terça-feira, 1 de outubro de 2013

Ensina-se a sonhar


Contando conto.


Seis horas e quinze minutos quando Neusa entra no carro ao final de outro dia de trabalho. Pelo caminho em trânsito lento, se perde em pensamentos:

Lembra do caixa do banco que a atendeu... Ele me olhou interessado? Como seria bom se ao chegar a casa ele estivesse lá! Poderíamos preparar uma massa ao sugo, com queijo e um vinho tinto acompanhando, à luz de velas, uma música... Qual? Ah, gosto tanto de Bolero de Ravel, como seria bom amar ao som dele! A emoção e o prazer num crescendo igual ao da música, até quase explodir!

Uma luz do farol do carro atrás do dela refletindo no espelho faz com que veja o sinal verde indicando passagem livre, engata a primeira marcha do carro, a segunda... Amanhã vou criar coragem e iniciar a dieta, preciso diminuir cinco quilos do meu peso, quero voltar a usar o tamanho médio das roupas. Acho que até poderei usar uma roupa que delineie meu corpo, não justa, não gosto, fica meio vulgar. Gosto de fazer mistério, sutilmente provocar olhares. Uma roupa que acompanhe os movimentos enquanto ando e usarei um perfume suave, mas marcante, gosto dos que lembram bálsamos, nada de flores, é muito meigo.

Agora foi uma buzina que tirou Neusa do mundo onírico. Se fosse eu a promovida para o cargo que a Sonia deixou vago? O salário é quatro vezes maior que o meu. Poderia viajar todo ano. Aonde iria assim que tivesse uma folga? Se fosse verão, para uma praia, uma ainda quase natural, sem avenidas com trânsitos. Um bom filtro solar e passaria o dia todo preguiçosamente ao sol. Quem sabe encontraria turistas interessantes e faria amizades de lugares distantes e desconhecidos. Se fossem agradáveis os convidaria para vir conhecer minha cidade, os hospedariam, até viver um amor de verão poderia... Estaria sem os quilos a mais, com roupas flutuantes, pois o salário me permitiria cuidados pessoais com especialistas e compras de vestidos esvoaçantes...

Neusa chega ao seu acanhado apartamento, abre a porta, acende a luz e nem repara na desordem que deixou ao sair. Anda flutuando, quase dançando, sente o vestido acompanhando os movimentos de seus passos, está ágil, magra... Prepara o macarrão instantâneo, acende o abajur, apaga a luz do lustre e janta acompanhada do caixa do banco à luz de velas...

Dias depois recebe o aviso prévio, seria demitida.

Neusa desempregada teve mais tempo para suas viagens mentais e nelas o tema agora era como sobreviveria sem um salário. Enviou seu currículo de administradora, para várias empresas de Recursos Humanos. Fez algumas entrevistas e ou não aceitou o trabalho por ser novamente simples secretária, ou não foi aceita em outros. Mas dos sonhos acordada não abria mão e num deles se imaginou sendo professora de técnicas de sonhos.

A idéia foi amadurecendo. O que recebeu dos direitos trabalhistas aplicou nos sonhos e nos planos que se seguiram. Alugou uma sala, divulgou suas aulas em jornais, revistas e internet. Contratou num jornal da cidade uma reportagem para falar sobre o assunto como se fosse matéria do jornal, onde divulgou o telefone e local de seu curso. Também comprou entrevista num programa de variedades da televisão local. As aulas seriam individuais e o enfoque era a necessidade de sonhar, pois dos sonhos chega-se aos planos e à realidade. Mobiliou a sala com os apetrechos estritamente necessários, abriu uma firma, criou fichas para serem preenchidas pelos interessados contando seus dados importantes como data de nascimento, nome completo e os demais: endereço, telefone e nacionalidade, somente para disfarçar.

Antes se preparou para falar e ministrar o curso, se fosse psicóloga, seria mais fácil, lembrou Neusa. Entre seus sonhos teve a idéia que pôs em prática: pesquisou em todos os meios que encontrou sobre características dos signos do zodíaco. Primeiro porque já havia comprovado que as características de cada signo de fato existem. Também resolveu dar crédito a tal de Numerologia, que descreve o perfil psicológico da pessoa de acordo com seu nome e data de nascimento. Iria se basear nessas duas características para sugerir sonhos e ensinar a sonhá-los.

Ficou na sala alugada por dois dias a espera de algum interessado. Quando o telefone tocou pela primeira vez Neusa respirou fundo para relaxar e atendeu com voz firme, agiu como quando sonhava, até fechou os olhos para melhor sentir o que dizer sobre a necessidade de sonhar. Convenceu a primeira candidata a fazer o curso e marcou a entrevista para aquele dia mesmo.

Depois da entrevista fez o planejamento para aquela aluna de acordo com suas características astrológicas e acreditando nas da numerologia. Neusa já havia concluído que quem procurasse suas aulas seriam pessoas com alguma carência ou até mais que uma e desenganadas pela vida, talvez. Somente precisava acertar no foco da carência, para isso usaria suas capacidades, a intuição e a sensibilidade.

Ana, sua primeira aluna, deixou transparecer sua timidez em assuntos relativo a amor, a elogios a qualquer situação que a colocasse no foco de atenções. Pesquisou seu signo e seus números obtidos da data de nascimento e pelas letras de seu nome e, concluiu: seus sonhos deverão ser de situações que a façam admirada, amada, vencedora e até invejada. Primeiro sonho sugerido: Ana numa viagem só, enfrentando o desconhecido... Neusa a guiava com sugestões depois que Ana, recostada num sofá confortável conseguiu relaxar ouvindo uma música suave. Nos dias seguintes foram sonhos de profissional capaz e desembaraçada, tomando atitudes rápidas; de conquistadora desinibida; de volúpias satisfeitas. Sonhos onde Ana não usava nenhuma máscara.

Ana indicou o curso a duas amigas e essas a outras pessoas. E para surpresa de Neusa, surgiu um Lauro, que depois trouxe um João, um Mário...

Três meses depois, contratou Ana para ajudá-la no curso, depois o contratado foi Lauro. As entrevistas iniciais eram feitas por ela, que depois passava as diretrizes aos professores contratados.

Um ano depois a Escola de Sonhos está instalada numa casa com vários espaços, dois psicólogos contratados para orientação dos professores e como responsáveis pelo serviço explorado e Neusa somente na coordenação das aulas e das entrevistas. Neusa agora é uma empresária de sucesso e tem recebido pedidos de franquia do serviço que registrou como sua propriedade intelectual. E continua sonhando e realizando quase tudo que sonha...

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